6.2.06

O grande MEC....sempre actual

“Como toda a gente sabe, as coisas já não são como eram. Por conseguinte, são poucas as coisas, hoje em dia, que não são-o-que-são. A nossa televisão, por exemplo, é-o-que-é. E o nosso povo também – é-o-que-é. O próprio país, e tudo o que há dentro dele, não faz a coisa por menos. É-o-que-é e não há nada por menos. Vejam-se as conversas cada vez mais conclusivas que hoje se podem ter. Dois portugueses a falar acerca das eleições autárquicas, por exemplo: Que achas dos candidatos?, pergunta um. Olha pá, diz o outro, São o que são. O primeiro ri-se ao reconhecer este naco precioso de sabedoria e concorda: Lá isso são! E logo acrescenta: O pior é que as eleições valem o que valem.... O outro, meditativo, assenta: Pois valem.... E ambos ficam mais esclarecidos do que quando começaram.
Graças a estas inovações epistemológicas e a outras, como o Sósaber, pode hoje dizer-se que não há povo no mundo que saiba tanto como os portugueses. Sabem tudo, excepto coisas comezinhas e concretas, como sejam, por exemplo, os nomes das ruas mais conhecidas das cidades onde viveram toda a vida. Pergunta-se-lhes e eles respondem: Se quer que lhe diga, não sei. Isto é tipicamente e embirrativamente português. Como nós queremos que ele nos diga, ele não sabe. Se nós não quiséssemos, ele não hesitaria em dizer. É por isso que apetece responder, cada vez que alguém diz isso: E se eu não quiser? Já sabe?
Existe outra fabulosa contribuição portuguesa, que é a distinção importante entre áreas do conhecimento. Estas resumem-se basicamente a duas: cá e lá. representa Portugal, aqui, esta miséria, e é o sitio onde não se dão hipóteses. Por exemplo, na frase Eu cá não sei. Em contrapartida, é além, o Estrangeiro, um sitio afastado e fabuloso, mítico e inatingível, onde tudo se sabe e tudo se tem. Por exemplo, na frase Eu sei lá. Embora queira dizer a mesma coisa que Eu cá não sei, existe esta subtil diferença. Implica Se eu não estivesse cá, mas lá, eu saberia. Mas como eu estou cá, e não lá, não sei nem quero saber.
Finalmente, existe outra expressão frequente que é igualmente impenetrável por cérebros não-indígenas. Por exemplo, a frase Vá lá a gente saber porquê. Um estrangeiro interpreta-a como significando Vamos todos àquele sitio para podermos averiguar as causas do sucedido, quando, na verdade, significa incompreensivelmente que não vale a pena ir a seja onde for, porque não há maneira de saber seja o que for. Eles lá sabem porquê.....”

Miguel Esteves Cardoso, “A Causa das Coisas”. Edit. Assírio e Alvim, 1986.

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